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O racismo enrustido de Ziraldo


Dojival Vieira

O cartunista e escritor Ziraldo, o mesmo que, em 1.971, deu início a campanha que levou à destruição da carreira artística e, posteriormente, à morte mesmo, do cantor negro Wilson Simonal, apresentado injustamente e sem qualquer prova como dedo duro da ditadura, voltou a atacar. Decidiu que é hora de reinventar o conceito de racismo e, lançando mão de sua criatividade gagá, o dividiu em dois: o racismo com ódio e o sem ódio.

O sem ódio, segundo o autor de “O Menino Maluquinho”, “não é problema”. Tudo “prá acabar com essa brincadeira de que a gente é racista”, defende-se, sem que até o momento alguém o tivesse acusado.

O drama de Simonal e o papel de Ziraldo, Jaguar e companhia é exposto no documentário “Ninguém sabe o duro que dei”, de 2009, dirigido por Cláudio Manoel, Calvito Leal e Micael Langer, que mostra o drama vivido pelo cantor ao ser apresentado como delator de militantes de esquerda, em um tempo em que isso significava a morte sob tortura nas masmorras do regime militar.

Antes do Pasquim estampar a célebre capa com o dedo negro indicador de Simonal apontado, em julho de 1969, o mesmo Pasquim de Ziraldo publicara entrevista de capa sob o título “Não sou racista”, em que o cantor era acuado com perguntas sobre racismo e ridicularizado por comer caviar e ter mordomo.

Agora, ele decidiu conceber e assinar a camiseta do Bloco carnavalesco “Que M* é Essa?!”, que tem por tradição fazer a crítica a escândalos políticos e combater o que chama de patrulhamento nas escolas dos livros de Monteiro Lobato.

O incômodo de Ziraldo ocorre à propósito do parecer do Conselho Nacional de Educação que recomendou ao MEC, no ano passado, a exclusão do livro “Caçadas de Pedrinho” do Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE), e que, na hipótese de decidir mantê-lo, exija das editoras uma Nota Explicativa sobre o ano e o contexto em que foi escrito – em 1.933 -, um tempo em que a própria Constituição de 1.934 advogava a higiene racial.

A posição de Lobato e a defesa do Eugenismo presente em toda a sua obra, são notórios. Não menos notórios são o uso e o abuso de estereótipos racistas.

Ziraldo, porém, finge a tudo ignorar e embarcou de corpo e alma na defesa de Lobato, desenhando o escritor abraçado a uma negra, e junto deles “o pau que atiraram nele e o cravo que brigou com a rosa”.

O ataque ao politicamente correto do Bloco, sob o lema “É proibido, proibir” é uma gigantesca farsa. O próprio nome do Bloco foi censurado pela Prefeitura do Rio, com a palavra merda sendo transformada no M com asterisco que ilustra a camiseta de Ziraldo.

Até aí a brincadeira parece, embora nada tenha de inocente. Ziraldo, porém, resolveu não apenas carnavalizar o seu racismo enrustido e “boa praça” mas abraçar o papel de ideólogo inventor do “racismo bonzinho”, uma espécie de versão ipanemense do racismo brasileiro, cordial, inofensivo, portanto, genoíno produto do mito da democracia racial, que é um dos pilares da exclusão da República de poucos em que vivemos.

Na campanha da destruição de Simonal, Ziraldo justificou-se, sem nenhum pudor, revelando a inveja e o ressentimento pelo sucesso do cantor: “Simonal deu azar de estar em grande evidência na época do maior patrulhamento ideológico. O Pasquim não admitia uma mijada fora do penico. Não quero livrar minha cara, mas tive a felicidade de não ser um dos que caíram matando nele. Era tolo, se achava o rei da cocada preta, coitado. E era mesmo. Era metido, insuportável. Morro de pena, ninguém merecia sofrer o que ele sofreu”, afirmou à época do lançamento do filme.

Ziraldo é tolo e se acha, porém, não é inocente.

As professoras Eliena Souza Nascimento da Silva e Suely Santos Santana, em artigo intitulado “A representação do Negro em O Menino Marrom de Ziraldo”, escrito em 1.986, disssecam o racismo “boa praça” do cartunista.

“No caso do Menino Marrom percebe-se que, escapando a idealização proposta na década de 80, o livro apresenta, de maneira sutil, uma visão racista e etnocêntrica, permeada pela criação de estereótipo que vislumbra a depreciação do negro. “[...] o menino cor-de-rosa resolveu perguntar: por que você vem todo o dia ver a velhinha atravessar a rua? E o menino marrom respondeu: Eu quero ver ela ser atropelada” (ZIRALDO, 1986, p.24).

“Aqui, fica claro que o negro, apesar de protagonista, continua sendo associado à marginalização, reforçado pelo estereótipo de que “todo negro é marginal[5]“, o que implica dizer que o livro aludido contribui mais para reforçar estereótipos do que para desconstruí-los”, acrescentam as pesquisadoras.

Eliene Souza e Sueli Santana também chamam a atenção para o título do livro, em que o menino marrom não se reconhece enquanto negro, o autor de forma sutil passa para o leitor que o menino marrom se aproxima mais do ideal mestiço, arraigado no imaginário social. A “mistura” pregada pelo autor, visa à aproximação do padrão de beleza branca, concluem as pesquisadoras.

Alguém precisa dizer para Ziraldo que seus volteios retóricos não escondem o conteúdo do seu racismo enrustido, hipócrita e dissimulado, mas, nem por isso menos letal.

O seu deboche fora de contexto não tem a menor graça, uma vez que a mesma coragem que demonstra para afrontar, a nós, negros brasileiros – vítimas cotidianas, inclusive do racismo bonzinho que advoga – falta-lhe para usar imagem semelhante em relação, por exemplo, ao nazismo, responsável pela morte de cerca de 6 milhões de judeus, negros e ciganos nos anos 30 na Alemanha.

Seria interessante ver o cartunista em fim de carreira justificar para as vítimas do nazismo que existe o “nazismo com ódio e o nazismo sem ódio”, e que o “nazismo sem ódio” não é mau, como sustenta em relação ao racismo.

Ao menos em respeito aos seus próprios cabelos brancos deveria ter um mínimo de dignidade de respeitar os nossos, a nossa história, os sofrimentos dos nossos antepassados sob o escravismo e dos que ainda continuam sendo alvos cotidianos, dos jovens na mira diária das balas assassinas (um jovem negro tem mais 3,7 vezes mais chances de ser assassinado antes de completar 18 anos do que um branco), fruto e resultado da cultura perversa – inclusive do racismo sem ódio e bonzinho que ele acaba de inventar.

http://www.afropress.com/editorial.asp

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